sábado, 12 de setembro de 2009

Notícias interessantes sobre os temas em estudo

Caros alunos, eis aqui alguns exemplos de notícias abordando crimes de perigo. Vale, a propósito, o pensamento de um grande filósofo:
"Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, ela não me salva."
José Ortega Y. Gasset

Correio Braziliense, 29.04.2005.

Sem apoio, mãe mantém filhas doentes em cárcere
(Renato Alves)

Sem acesso a clínicas públicas, sem dinheiro para pagar particulares e sem força para conter ataques de fúria, a pensionista Antônia Macedo de Almeida, 75 anos, decidiu colocar duas filhas com distúrbios psiquiátricos atrás das grades. Elas ficam em dois quartos parecidos com celas de presídio no fundo de casa, na Vila Buritis, em Planaltina. Cada cômodo tem oito metros quadrados, uma cama de alvenaria, telha de amianto, janela e porta de ferro. É dentro deles que Maria Macedo de Almeida, 42, e Luciana Macedo, 32, passam a maior parte do dia. “Quando elas ficam nervosa, tenho que trancar as portas com cadeado. E ninguém pode entrar lá”, conta a mãe, que teve a costela quebrada por Maria há cinco anos. O corredor de acesso aos quartos tem ainda duas portas, também de ferro e com grades. O quarto de Maria é o único com banheiro. E tem apenas o vaso. “É que ela quebrou o resto”, explica Paulo, 35, outro filho de Antônia. Maria e Luciana costumam urinar e defecar nos lençóis que cobrem seus colchões. Só tomam banho de mangueira. Além de quebrar o que vêem pela frente, também rasgam as roupas. “Quando elas ficam nervosas jogam tudo para fora, inclusive comida”, comenta Antônia. A pensionista construiu os dois cômodos há quatro anos. Ela diz que a idéia e o dinheiro para a obra são da ex-patroa, moradora do Plano Piloto, para quem Antônia trabalhava como diarista. “Contei os meus problemas e ela me ajudou.” Antônia tem outro filho deficiente mental, Antônio Carlos, 42. “Mas ele quase não dá trabalho. Até toma banho sozinho.” Antônia reclama da falta de apoio. Lamenta ter que trancar as filhas a cada ataque nervoso. Acredita que seria melhor para todos se os três filhos doentes ficassem internados em clínica especializada. “Aqui eles incomodam até os vizinhos. Quando ficam nervosos, passam a noite batendo nas grades.” A única ajuda do Estado que Antônia diz receber são os remédios para os filhos e a pensão de R$ 260 mensais. O marido foi espancado até a morte, perto de casa, em 1994, aos 65 anos. Dois anos depois, Antônia perdeu o filho mais velho, Victor, assassinado a tiros, também em Planaltina. Em 1997, a pensionista assistiu à morte da filha Marlene, vítima de leucemia. Servidora da Secretaria de Educação, era ela quem mais ajudava a mãe. Revolta Dos sete filhos vivos, além dos três doentes, três moram com Antônia. Dois estão desempregados. Um é alcoólatra. O único que ajuda a pagar as despesas da família é Paulo, que ganha, em média, R$ 200 por mês como ajudante de massagista. Ele não se conforma com o sofrimento da família. “Nem sequer tenho como levar minhas irmãs doentes ao médico.” O homem alega que as irmãs não podem sair de casa por causa dos constantes ataques. A família não tem carro e nenhum médico ou enfermeiro vai à casa examinar os doentes. “Cansei de marcar consulta no posto de saúde, mas não pude levá-las. Já chamei os bombeiros para me ajudar, mas eles disseram que não podiam vir.” Outra filha de Antônia, que mora em Taguatinga, tenta há cinco anos conseguir uma aposentadoria para as duas irmãs doente. Mas sempre teve os benefícios negados. Maria apresenta distúrbios desde que contraiu sarampo, aos três anos. Os irmãos contam que Luciana e Antônio Carlos surtaram aos 15 anos. Os três foram internados diversas vezes. Mas nunca permaneceram mais do que um mês em uma clínica. Uma equipe do Programa Saúde da Família irá hoje à casa de Antônia. A informação foi dada ontem pela assessoria de comunicação da Secretaria de Saúde do DF, que disse ser ilegal o transporte de portador de distúrbio mental em ambulância pública. A assessora do órgão afirmou ainda que não há norma do Ministério da Saúde que obrigue o governo local a afazer atendimento domiciliar de doentes mentais.

Correio Braziliense, 13/04/2007.

Perigo nos salões da capital (Talita Cavalcante, da equipe do Correio)

Cabeleireiros brasilienses continuam a aplicar escovas progressivas com alta concentração de formol, apesar dos casos de intoxicação em cidades goianas. Em média, produtos do DF têm 3% da substância.

Apesar das últimas ocorrências de utilização de formol em escovas progressivas no estado de Goiás, os cabeleireiros do Distrito Federal mostram-se despreocupados. Depois da morte da dona-de-casa Maria Enir da Silva, 33 anos, em Porangatu (GO), no fim do mês passado, o uso da substância em escovas progressivas passou a ser alvo da fiscalização das vigilâncias sanitárias estaduais e municipais. Só nas duas últimas semanas sete produtos foram apreendidos pelo órgão em Formosa. Além disso, cabeleireiras do município goiano denunciaram duas marcas brasilienses como intoxicantes: a Thermo Liss e a Sanep. A proprietária da Thermo Liss afirma ter um laudo que comprova a qualidade do produto. A equipe do Correio esteve ontem em cinco salões de beleza de cidades do DF e constatou o uso de até 4% de formol em fórmulas alisantes para cabelo. Durante a manhã de ontem, o Correio percorreu o Riacho Fundo, Samambaia e Recanto das Emas. Lá, salões de beleza deixam à mostra faixas e letreiros com várias opções de alisamento progressivo. Funcionários de cinco estabelecimentos admitiram que usam formol em porcentagem superior ao 0,2% permitido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em alguns salões o produto fica exposto. Em outros, ele é camuflado, para evitar problemas com a fiscalização. Os preços das escovas variaram de R$ 70 a R$ 140. Liso, só com formol Em um salão do Riacho Fundo, a funcionária e a proprietária afirmaram que é impossível alisar os cabelos sem a utilização de formol. Ambas admitiram usar 3% da substância na escova progressiva. Segundo elas, o resultado é cabelo liso e sem quedas. O produto usado no estabelecimento tinha rótulo irregular, sem nome do fabricante, do químico responsável, endereço ou CNPJ da empresa. Além disso, os 3% vinham explícitos na embalagem. “Mas essa medida aí está errada, o produto só tem o permitido pela Anvisa mesmo”, rebateu a funcionária quando questionada sobre a quantidade de formol no produto. Os percentuais mais abusivos foram encontrados em Samambaia Norte. Lá, uma cabeleireira faz todos os tipos de escovas progressivas e usa até 4% de formol no procedimento. “Vai fica lisinho seu cabelo. Eu mesma já fiz quatro vezes”, contou a cabeleireira, que trabalha na própria casa. Os salões que funcionam em residências têm mais facilidade de camuflar os produtos, por ficarem afastados das áreas comerciais. Em outro estabelecimento na mesma rua, foi encontrada outra marca de escova progressiva com 3% de formol e com rótulo irregular. A cabeça das clientes do Recanto das Emas é feita pela escova Sanep. Os cabeleireiros continuam a usar a marca denunciada em Formosa por intoxicação. “Todos os salões aqui da região usam a Sanep. O revendedor andava de Fusca há um ano, e agora está de Toyota Hilux”, afirmou uma das cabeleireiras que usa a marca. A sede da Sanep fica no Guará e já recebeu a visita de fiscais na semana passada. Nada de irregular foi encontrado no local. A Vigilância Sanitária de Formosa afirma que os produtos podem ter sido escondidos antes da blitz. Nada de reclamações Nem todos os salões de beleza têm reclamações da escova progressiva Thermo Liss. A cabeleireira Aparecida Gonçalves Linhares, 42 anos, usa o kit dos produtos há nove meses e afirma nunca ter tido problemas. Ela conta que muitos cabeleireiros alteram os produtos nos próprios salões para ter mais lucro. Isso estaria causando os casos de intoxicação com a escova progressiva, segundo ela. Aparecida conta que produtos de alisamento autorizados pela Anvisa também causam mal-estar. “É preciso se proteger com máscaras e luvas. O sindicato deveria obrigar isso.” Aparecida conta já ter feito seis progressivas e nunca ter passado mal. De acordo com ela, as clientes sabem dos riscos do procedimento, mas querem usar o formol. “Quem vem para o salão para alisar os cabelos não quer meio termo. Quer sair com os cabelos lisos e não com menos volume”, contou. Ela afirma que é feita uma entrevista com as candidatas à escova progressiva para checar possíveis alergias. A cabeleireira diz ter testado seis produtos antes de decidir trabalhar com a escova da Thermo Liss.

Empresa não assume riscos
A marca Thermo Liss existe desde 2003 no Distrito Federal. A distribuidora emprega 28 funcionários em Taguatinga Norte. A proprietária da marca, Simone Magalhães, 37 anos, admite que as escovas encontradas em Formosa com 3% de formol saíram de sua empresa. Porém, ela diz não trabalhar há um mês com essas mercadorias. Segundo a empresária, a firma possui, desde novembro do ano passado, um selo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para outros produtos livres de formol. Além disso, a marca tem um laudo datado de 2004, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que atesta a qualidade da escova progressiva. Com mais de 2 mil clientes cativos, a empresa se isenta de responsabilidade sobre qualquer caso de intoxicação causada pelas escovas progressivas da Thermo Liss. “O grande problema é que não temos controle quanto ao manuseio do produto pelos cabeleireiros. Muitos deles, acrescentam formol ao composto”, argumentou Simone. Ela conseguiu a fórmula da mercadoria há quatro anos com uma cabeleireira do Guará e viu no produto uma saída para o desemprego. “Muita gente quer descobrir essa fórmula para ganhar dinheiro”, completa a empresária, que se submete à técnica e aplica a progressiva na própria filha, uma criança de apenas 4 anos. Câncer Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o formol em concentrações superiores às regulamentadas pode causar câncer, principalmente de boca, de nariz ou de intestino. E, inalado, resulta em falta de ar, dores de cabeça e enjôos. Em contato com a pele, o composto pode causar coceiras e inchaço. “Porém, a informação parece nunca ser suficiente. É preciso ter bom senso e responsabilidade para lidar com a saúde”, explica a doutora em dermatologia da Universidade de Brasília (UnB), Carmelia Reis. Nos registros da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Thermo Liss tem apenas um comprovante de protocolação online. De acordo com a resolução nº 343/05 da Anvisa, produtos considerados de baixo risco, como xampus e condicionadores, podem ser registrados pela internet e recebem uma autorização provisória de fabricação, enquanto as informações são analisadas por técnicos da agência. É esse o caso da escova comercializada por Simone. Ou seja, o produto ainda não tem um laudo e a permissão definitivos da Anvisa. A agência informou que ainda existem algumas divergências nos dados repassados pela Thermo Liss e a empresa deverá ser procurada em breve. (TC)

Correio Braziliense, 10/01/2007

Infância destruída
(Érica Montenegro e Edilson Rodrigues, da equipe do Correio)

Menino cai em pó de carvão despejado perto de sua casa, vizinha da Ciplan, em Sobradinho, tem o corpo todo queimado e cinco dedos amputados. Polícia vai indiciar caminhoneiros e funcionários da fábrica

Moisés pergunta à mãe, Maria José, se os dedinhos do pé que foram amputados vão crescer de novo: armadilha ambiental criminosa

Dentro de um barraco sem ventilação, Moisés de Souza Soares, de apenas 4 anos, passa os dias em silêncio. Na maior parte do tempo, assiste à televisão, calado. Quando abre a boca, é para perguntar à mãe se os dedos do pé esquerdo vão crescer de novo. Moisés teve cinco dedos amputados — quatro do pé e um da mão esquerda —, depois de sofrer um acidente a menos de 300m de casa, na comunidade de Queima Lençol, próximo a Sobradinho II. A criança ia assistir a um jogo de futebol, em agosto último, quando decidiu atravessar um terreno cuja superfície estava coberta por munha de carvão — material altamente inflamável que serve de combustível para fornos que fabricam cimento. Na inocência de seus 4 anos, Moisés não sabia que o caminho que usava diariamente em suas brincadeiras de criança havia se tornado uma perigosa armadilha depois que caminhoneiros que atendem à Cimento Planalto (Ciplan) despejaram ali cinco caminhões de munha — 64 toneladas, ao todo. O material havia sido recusado pelo controle de qualidade da Ciplan e, para não voltar para casa com a caçamba cheia, o que implicaria prejuízo financeiro, os caminhoneiros jogaram o carregamento de munha no terreno em frente à entrada principal da fábrica. A céu aberto, a munha, que é obtida a partir da queima de árvores e tem a consistência semelhante à do talco, ferveu ao ponto de provocar queimaduras de 1º, 2º e 3º graus no corpo magro de Moisés. A criança ficou, ainda, com os braços e as mãos contorcidos como acontece com pedaços de paus esturricados por fogo. “Foi uma irresponsabilidade sem tamanho. Por muito pouco, essa criança não morreu”, afirma o delegado-chefe da 35ª DP (Sobradinho II), Marcos Antônio Naves de Oliveira. Ele pretende indiciar os caminhoneiros, os chapeiros — que têm a função de esvaziar caminhões e ajudaram a descarregar a munha —, e os funcionários da Ciplan por crime de lesão corporal gravíssima praticado contra Moisés. “Todos são responsáveis pelo fato de saberem que aquele material, jogado naquele lugar, representava perigo seriíssimo para a comunidade”, afirma Oliveira. Depoimentos O inquérito policial deve ser encerrado em duas semanas. A partir daí, caberá a um juiz decidir qual a responsabilidade de cada um dos envolvidos. “No meu entendimento, a maior culpa é da Ciplan. O terreno onde o material foi despejado é dela. Os caminhoneiros estavam ali para entregar o material para ela”, opina o delegado. Nos depoimentos prestados na 35ª DP, um dos funcionários chegou a reconhecer que indicou o terreno da fábrica para que a munha de carvão fosse despejada. Contudo, a Ciplan, por meio de sua advogada Vanessa Tavares, nega o fato. “Jamais um funcionário do nosso quadro faria isso. Só quem pode decidir sobre o material de descarte são os especialistas em controle ambiental”, afirma Vanessa, especializada em direito ambiental. No entendimento dela, a culpa não pode ser atribuída à Ciplan, pois os caminhoneiros e os chapeiros que colocaram a munha no terreno não fazem parte do quadro da empresa, trabalham como autônomos. “Nós não podemos nos responsabilizar pela conduta deles, pela falta de informação ou pela má-fé com que agiram”, argumenta a advogada. Moisés mora com a mãe, Maria José de Souza Silva, 36 anos, e outros cinco irmãos mais velhos em Queima Lençol, uma comunidade localizada em frente à fábrica. Da varanda da casa deles, se avistam as chaminés da Ciplan. O pai abandonou a mulher e as crianças quando Moisés nasceu e Maria José está desempregada. Até para se alimentar a família depende de doações. “Deus tem de nos ajudar. Agora mais do que nunca”, confia ela, que, acompanhada do caçula, tem freqüentado a Assembléia de Deus de Sobradinho II. Quando, durante os cultos, os fiéis pedem para ver o corpo de Moisés, o menino se encolhe e abaixa a cabeça. Tem vergonha dos dedos dos pés, dos braços e das pernas que foram queimados pela munha de carvão. “Com os meninos daqui, ele até que brinca. Mas, quando chega uma pessoa de fora, morre de vergonha”, conta Maria José de Souza Silva.
Série de cirurgiasO acidente de Moisés aconteceu em 17 de agosto do ano passado, uma quinta-feira, à tarde. Mas a recuperação dele não tem data para se efetivar. Apenas em 26 de dezembro último, a criança pode voltar para casa, com a condição de ir ao Hospital Regional da Asa Norte (Hran), especializado no tratamento de queimaduras, pelo menos três vezes por semana para trocar os curativos e prosseguir com o tratamento. Em laudo médico assinado na segunda-feira, 8 de janeiro, o chefe da Unidade de Queimados do Hran, Mário Frattini Gonçalves Ramos, afirma que Moisés apresenta “restrições severas a movimentação de cotovelos, punhos, mãos, dedos das mãos e dos pés, e joelhos, sendo caracterizado como deficiente físico”. E prevê novas cirurgias corretivas e um longo tratamento fisioterápico para o menino. Na tarde do acidente, a criança foi socorrida por vizinhos e levada ao Hospital Regional de Sobradinho (HRS). De lá, foi encaminhada ao Hran. “Ele apareceu gritando: ‘Caí no fogo, caí no fogo’”, relata Carlúcia Diniz Barbosa Mota, 25 anos, que estava na quadra de futebol para onde o menino se dirigia antes de cair na munha de carvão. “Depois de se queimar inteiro, ele correu pelo menos uns 50m até chegar aonde a gente estava”, conta ela, que, junto com o marido, levou Moisés ao HRS. Resistência No Hran, o pequeno Moisés daria novas provas de resistência. Durante os 4 meses e 10 dias em que ficou internado, passou por quatro cirurgias para tentar se recuperar e, depois, amputar os dedos do pé e da mão. Também resistiu a outras cinco cirurgias, para enxertar pele da cabeça nas áreas do corpo que estavam mais queimadas. No processo de tratamento, Moisés sofreu insuficiência cardíaca e infecções diversas provocadas pela falta de defesa do organismo. “Ele está muito fraco. Tenho de tomar todo cuidado do mundo com ele. Não posso nem trocar os curativos aqui em casa”, relata Maria José de Souza Silva que, dia sim, dia não, vai ao Hran para que o filho seja atendido. “O pior é que ele não agüenta mais ir ao hospital. Quando chega lá, ele já está com cara de triste”, lamenta a mãe, que depende de carona para chegar ao Plano Piloto. (EM)

CORREIO BRAZILIENSE, 09/06/00 Cidades, pág. 4

ELA JÁ SABE QUE A DOR UM DIA PASSA

Menina que teve as pernas quebradas por espancamento engordou 3,5 kg, brinca com irmã e aprendeu a falar ‘mãe’.
(Marcelo Abreu Da equipe do Correio).

Em setembro do ano passado, a cena era só de dor. E revolta. Não houve quem não se comovesse no corredor daquele hospital em Taguatinga. Uma menina de quatro anos deitada numa cama ardia em febre. Não falava nem andava. Só chorava. Berrava. Tinha medo de tudo. Ninguém podia se aproximar dela. O olhar era de pânico. Um relatório médico, assinado por um ortopedista e anexado a uma pasta azul, dizia: ‘‘Síndrome de criança espancada, evidenciada pelos sinais de fratura nas radiografias’’.
Uma história desumana. V.S.C. tinha as duas pernas fraturadas e esperava por uma cirurgia para corrigir uma luxação dos quadris, doença congênita que a mãe biológica alegava ser decorrente dos espancamentos que sofrera do companheiro durante a gravidez. Detalhe: segundo a mesma mãe, V. teria quebrado as duas pernas depois de ter caído do sofá, enquanto assistia televisão em casa, em Santo Antônio do Descoberto. Mais: a mãe só procurou o hospital dez dias depois da ‘‘queda’’.
Nove meses depois, o Correio reencontrou V. A cena daquela cama de hospital ficou para trás. Pelo menos por enquanto. Ela ainda será submetida a pelo menos mais duas cirurgias para corrigir o problema congênito. Às vésperas de completar cinco anos, a menina fala, já consegue pronunciar algumas palavras e até aprendeu a chamar o nome mãe. V. aprendeu também a sorrir. E a mulher a quem chama agora de mãe não é a biológica. Na verdade, ninguém sabe exatamente por onde anda a mãe verdadeira. Mas já avisou que lutará para ficar com a menina novamente.
Há exatamente nove meses, desde que a menina deixou o Hospital Regional de Taguatinga (HRT), a dona-de-casa Alice Maria Camargo, de 33 anos, assumiu, diante da Vara da Infância e da Juventude, a guarda provisória de V. A história é intrigante.
‘‘Nem sabia que ela estava internada no hospital. Mas uma voz me chamou e me dizia: ‘Vai pro hospital, vai pro hospital...’ Eu acho que essa voz era Deus’’, conta Alice Maria, que é Adventista do Sétimo Dia. ‘‘Aí, no dia 7 de setembro, peguei uma lotação, nem tinha dinheiro, mas consegui arrumar e fui ao HRT. Não sei por que, mas saí de casa chorando. Chorei o caminho todo. Quando cheguei lá e o meu medo era que o guarda perguntasse quem eu ia visitar. Eu não tinha ninguém internado. Mas o guarda não perguntou nada. Me deixou subir’’, lembra.
Nesse momento, na sala daquela casa de dois quartos e cimento vermelho queimado na M. Norte, a voz de Alice Maria embarga: ‘‘Quando eu cheguei no quarto 415, vi aquela menininha deitada na cama. Tinha catapora. Ela me olhou com lágrimas nos olhos. Aí, eu entendi aquela voz’’.
Uma semana depois do inusitado encontro, Alice Maria foi à Vara da Infância e da Juventude. ‘‘No dia 27 de outubro, o juiz me deu a guarda provisória de V.’’, diz Alice Maria. Exatamente por ser provisória, Alice Maria e o marido, Pedro Paulo Miranda, de 45 anos, só poderiam ficar 30 dias com a menina. Depois, teriam que voltar ao juizado para preencher a papelada da adoção.

SONHOS MODIFICADOS

Mas foi aí onde tudo deu errado para Alice Maria. O marido, que era vendedor, perdeu o emprego. A dificuldade em casa desnorteou a família, que mora de aluguel e tem sobrevivido basicamente com a ajuda dos irmãos da igreja. O casal tem dois filhos biológicos, de 12 e 10 anos, e cria também mais uma menina, Bianca, hoje com 3 anos. No meio de uma crise financeira, V. acabara de chegar.
‘‘Fiquei com medo de voltar ao juiz e ele não deixar eu ficar com ela por causa do desemprego do meu marido. As assistentes sociais avaliam tudo isso. Sei que estou errada, deveria ter voltado ao juiz, mas fiz isso por amor. Deus é testemunha disso’’, desespera-se.
O fato é que há oito meses Alice Maria cria V. como se fosse sua filha. ‘‘Eu tenho certeza que Deus me colocou na vida dela. Pra mim, eu sou a mãe’’, acredita. ‘‘A gente aprendeu a amá-la e ela aprendeu a nos amar também. Isso está no olhinho dela quando olha pra gente’’, intervém, também emocionado, Pedro Paulo. ‘‘Estamos passando dificuldade, mas graças a Deus comida não tem faltado’’, continua Alice Maria.
Longe da polêmica a que será protagonista principal, V. só quer brincar com os bichinhos de pelúcia. Com a ‘‘irmã’’ de 3 anos, que é maior que ela, a menina parece ter esquecido — pelo menos por enquanto — o passado. Ainda não consegue andar, por causa do problema nas pernas, mas se locomove como sabe. ‘‘A gente diz que ela desliza pela casa. Já sobe pelo sofá, brinca no chão...’, conta Alice Maria, orgulhosa do progresso de V.
Nos últimos meses, V. engordou três quilos e meio. Quase nunca acorda à noite, sob pesadelos e gritos. Aprendeu a dizer tchau e descobriu até que sente cócegas no pé.
Hoje à tarde, Alice Maria voltará à Vara da Infância e da Juventude. ‘‘Nem dinheiro pro ônibus a gente tem, mas nós vamos arrumar’’, diz. O destino de V. continua incerto. A defensora pública da Vara da Infância e da Juventude, Ester Dias Cruwinel, acompanha, junto ao juiz, da guarda provisória da menina a Alice Maria.
Como o processo é sigiloso, Ester não pôde adiantar qual o destino da menina. Mas explicou: ‘‘O juiz levará em conta apenas o interesse e o benefício da criança. E onde onde ela poderá se desenvolver física e psicologicamente melhor’’. V. poderá voltar à mãe biológica, ser adotada por Alice Maria ou até mesmo ir para um orfanato.
Agora, é só esperar a decisão do juiz.

CORREIO BRAZILIENSE, 12/09/2001-Cidades

FIM DAS AGRESSÕES

Uma palmada violenta ou omissão de tratamento médico podem ser causas de graves seqüelas nas vítimas. Crimes de maus-tratos são casos de polícia. Saiba como denunciá-los
Uma denúncia anônima acabou com o drama de Lucas (os nomes dos personagens são fictícios), 9 anos. Quando chegou à Delegacia Especial de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), em fevereiro, o garoto estava com as mãos queimadas. Em cada palma havia marcas redondas e avermelhadas. Depois de entrevistar testemunhas e a mãe da vítima, Luísa, os policiais chegaram à conclusão de que Lucas havia sofrido maus-tratos.
No último dia de janeiro deste ano, Luísa deu R$ 5 para que Lucas comprasse cigarros em um supermercado próximo à casa deles, no Riacho Fundo. O garoto voltou com o maço na mão, R$ 1 de troco e um pacote de balões no bolso. Depois de telefonar para o estabelecimento, a mãe descobriu que o filho havia furtado a mercadoria. Como punição, fez com que ele apertasse ovos cozidos quentes com as mãos. O processo está na justiça. Luísa pode ser condenada de um a quatro anos de prisão pelo exagero na tentativa de corrigir a criança.
‘‘Eu estava querendo apenas educar meu filho’’, disse a mãe, em depoimento prestado na delegacia. No Código Penal Brasileiro, o crime de maus-tratos (artigo 136) é identificado quando a vida ou a saúde da vítima é exposta a perigo por pessoa que deveria cuidar dela e educá-la. ‘‘É um crime muito delicado que pode ser a causa de muitas sequelas futuras. Por isso deve ser sempre denunciado’’, explica a delegada-chefe da DPCA, Selma Frota Carmona.
Das denúncias que chegam à DPCA, o crime de maus-tratos é o mais constante. Até março deste ano, a delegacia registrou 32 casos, sem contar as recebidas por outras delegacias (o número total, de acordo com a delegada, é de cerca de 60). ‘‘Tudo começa com uma simples palmada. Por isso, aconselhamos aos pais a não bater nos filhos, a tentar resolver os problemas com diálogo’’, diz Selma.
Para a criança, a maior vítima de maus-tratos, a violência pode provocar distúrbios futuros. ‘‘A vítima pode formar uma personalidade sadomasoquista quando adulta, porque aprende a tirar prazer de uma experiência dolorosa’’, observa o agente de polícia com formação em Psicologia Sérgio Luis Felicíssimo.

COMO DENUNCIAR

O local mais apropriado para denunciar casos de maus-tratos é a delegacia de polícia mais próxima. Quando o agressor não é o responsável legal por cuidar da vítima, o crime configura-se como lesão corporal e também é caso de polícia. No caso das mulheres, crianças e adolescentes, idosos e deficientes físicos, há centros especializados que recebem denúncias e acompanham o desenrolar das investigações policiais. Tudo com sigilo garantido.
No caso de animais, também há leis específicas contra maus-tratos. A lei distrital nº 1962 define o crime como ‘‘toda ação contra animais que implique crueldade, especialmente ausência de alimentação mínima necessária, excesso de peso de carga, tortura e submissão.’’
Para o presidente da Associação Brasiliense de Rottweiler (ABRO) e advogado Marcus Rito, faltam campanhas educativas para ensinar à população que tipo de tratamento pode ser considerado criminoso. ‘‘Muitas pessoas deixam o cachorro preso o tempo todo, não limpam o canil e não dão os remédios adequados. Isso deve ser denunciado’’, afirma.
É lei:

Maus-tratos contra pessoas: A vítima tem a vida ameaçada ou a integridade física ou psicológica exposta a risco por pessoa que deveria cuidar dela e educá-la, como pais, professores, médicos ou responsáveis por sua guarda. Quando o agressor não tem obrigação legal de cuidar da vítima, o crime é de lesão corporal. A pena varia de um a quatro anos de reclusão, se a lesão for grave (para vítimas com idade inferior a 14 anos, a pena aumenta em 1/3).

Maus-tratos contra animais: Animais que realizam trabalho excessivo, não recebem alimentação adeqüada, são tratados com crueldade pelo dono ou participam de atividades como rinhas são as vítimas. A pena pode variar de um a três anos de reclusão. Os casos podem ser denunciados na delegacia de polícia mais próxima.

Telefones para denúncias de agrassão:
Disque-denúncia da Polícia Civil do Distrito Federal: 147
Crianças e adolescentes: Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente: 361-1049 (funciona de 9h às 12h30 e das 14h30 às 19h).
Conselhos Tutelares: Brazlândia - 391-5809; Ceilândia - 373-0295; Gama - 556-9677; Paranoá - 369-1821; Planaltina - 389-8311; Santa Maria - 392-1886; Sobradinho - 591-0660; Taguatinga - 351-7133.
Vara da Infância e da Juventude: 348-6600 e 348-6717
Promotoria de Defesa da Infância e da Juventude: 347-6944, 349-9496. Fax: 349-4619.
Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente (SRTVS Quadra 701 - Bloco I, Ed. Palácio da Imprensa, 5º andar): 321-1203 (de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h).
Mulheres: Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAM): 244-9566, 244-3400
Disque-denúncia da Polícia Civil: 323-8855
Conselho dos Direitos da Mulher do DF (SRTVS Quadra 701, bloco I, Ed. Palácio da Imprensa, 5º andar): 321-2280 (de segunda a sexta-feira, das 12h às 18h).
Disque Direitos Humanos da Mulher: 322-2266
Idoso e portador de deficiência física: Promotoria do Idoso e do Portador de Deficiência - Cuida da defesa dos direitos do idoso no que toca à saúde, transporte, abrigo, maus-tratos e abandono. Também cuida da defsa dos direitos do portador de deficiências físicas. Telefone: 343-9500, ramais 556 e 843.

Animais:
Sociedade Protetora dos Animais: 9991-5721
Tele Maltrato de Cães (da Associação Brasileira de Rotweiler): 9617-0893
Ibama: 0800-61-8080
Polícia Florestal (Antigo Núcleo de Custódia, área sem número, Candangolândia): 301-3396 e 301-4427.
Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural - Ministério Público do Distrito Federal e Territórios: Recebe denúncias no edifício sede do MPDFT, na Praça Municipal, lote 2, Eixo Monumental, 2º andar, sala 230. Fax: 343-9650. CEP: 70091-900.


CB, 18/03/2008 – Brasil

Adolescente é torturada. Polícia Civil prende empresária acusada de acorrentar e maltratar menina de 12 anos, em Goiânia. Marido da suspeita está foragido

Uma cena de tamanha crueldade, que abalou até mesmo policiais acostumados a presenciar crimes bárbaros diariamente, chocou ontem a capital de Goiás, Goiânia. Depois de uma denúncia anônima, a Polícia Civil prendeu uma empresária da construção civil, acusada de torturar uma menina de apenas 12 anos. A garota foi encontrada acorrentada no apartamento da suspeita, localizado em um bairro nobre da cidade, e apresentava vários sinais de tortura, como unhas arrancadas, língua cortada e queimaduras feitas com ferro de passar roupa nas nádegas. A cena terrível chegou a levar às lágrimas os agentes que libertaram a menina. A vítima foi encaminhada para uma delegacia. Lá, a adolescente está sendo assistida por psicólogos, antes de ser levada para uma instituição da prefeitura. A polícia filmou toda a ação para provar que a menina estava acorrentada quando foi encontrada. A delegada encarregada do caso, Adriana Accorsi, disse que não consegue explicar tanto “sadismo”. “Só a psiquiatria pode explicar tamanha crueldade”, afirmou. Ao prenderem a empresária, os policiais também deram voz de prisão à empregada que trabalhava na casa, acusada de participação nos crimes, que alega ter sido forçada a manter a história sob sigilo. O marido da empresária, Marco Antônio Calabrese, está sendo procurado pela polícia.