segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Notícia interessante sobre injúria qualificada por conotação racial

DIREITOS HUMANOS
Justiça minimiza o preconceito

Estudo apresentado na UnB indica que 92% dos processos penais envolvendo racismo em sete estados acabam desclassificados para injúria, que prescreve mais rápido e tem pena considerada branda
• Renata Mariz

Adauto Cruz/CB/D.A Press - 2/10/09


Fabíola da Rocha acionou a Justiça por ter sido xingada em um órgão público do DF. Não conseguiu indenização


Uma olhar atravessado, insinuações sutis e até cochichos sempre fizeram parte da rotina de Fabíola da Rocha Bastos quando era vigilante em um órgão público do DF. O que ela não imaginava, porém, é que alguém tivesse coragem de verbalizar o preconceito. Até que um homem dizendo-se advogado, em fevereiro de 2003, recusou-se a mostrar a documentação para que Fabíola liberasse a sua entrada no prédio e começou a gritar. “Como uma nega safada vem me barrar? Você deveria estar na cozinha, não aqui recebendo as pessoas”, conta a mulher com 38 anos hoje. Sentindo-se envergonhada e humilhada, Fabíola acionou a Justiça baseando-se na lei de 1989 que criminalizou o racismo.

Pode parecer inusitado o empenho em fazer valer a lei, mas não representa necessariamente uma novidade nos tribunais. Tese de doutorado defendida recentemente na Universidade de Brasília (UnB) identificou quase 7.034 processos penais envolvendo racismo em apenas sete estados — Roraima, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Alagoas e Paraíba — de 2005 a 2007. Uma análise mais apurada das ações revelou que em 92% dos casos o crime é desclassificado de racismo para injúria no andamento do processo. “Ao se tornar injúria, passa a prescrever mais rápido e a punição é mais branda”, diz Ivair Augusto Alves, que além de doutor pela UnB trabalha com a questão racial na Secretaria Especial da Promoção de Políticas da Igualdade Racial (Seppir) da Presidência da República.

De acordo com ele, o estudo leva a duas conclusões. “Primeiro é que o Judiciário não enxerga o racismo, não preserva os direitos do povo que sofre discriminação em função de cor. O outro dado está no número significativo de ações, contrariando o senso comum”, constata Ivair. O especialista chama a atenção para a quantidade de casos que não chegam a virar processos, tomando como base um dado da literatura científica de que, em média, uma em 17 ocorrências de racismo vira ação penal. “Essa estimativa é real e comprovada. Se pensarmos que identifiquei quase 8 mil processos em sete estados, imagine o quanto devem ser altos os números reais da discriminação”, destaca.

Para João Ricardo Santos, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Brasil na área de direitos humanos, há falta de experiência por parte da Justiça no manejo de questões raciais. “O racismo muitas vezes não é percebido e acaba banalizado, não porque os operadores do direito queiram, mas porque somos parte de uma sociedade que trata o assunto dessa forma”, destaca.

Aprendizado
Fabíola tentava uma indenização de R$ 3 mil no âmbito cível do homem que a ofendeu em público, mas nunca foi paga. “A gente fica com cara de palhaço. Foram três anos de idas e vindas ao tribunal, eu estava grávida na época, para não acontecer nada?”, lamenta a mulher. Ela conta que ouviu até de amigos conselhos para deixar isso de lado. “A promotora tentou fazer uma conciliação, dizendo que eu tinha entendido errado, que não se tratava de racismo. Mas eu não aceitei. Ainda bem que o juiz era firme”, lembra Fabíola. “A única coisa que me faz não ficar revoltada é que alguma coisa aquele homem aprendeu.”

O motivo que levou Fabíola à Justiça é o mais comum verificado no estudo da UnB. “A ofensa verbal está em quase todos os processos. É como se as pessoas carregassem um ódio na hora de se expressar. E os juízes acham que é uma questão de mau gosto, não pensam no sentimento daquele que ouviu a barbaridade”, ressalta Ivair. As mulheres, segundo ele, são maioria entre os autores dos processos — cerca de 60%. “Talvez porque a mulher adquiriu um senso maior de violação, em função mesmo da submissão a que era submetida há até pouco tempo”, sugere o juiz João Ricardo.

Defesa recente
Intitulada Direitos Humanos e as práticas de racismo. O que faremos com os brancos racistas?, a pesquisa foi apresentada no Departamento de Sociologia em setembro. Na defesa, participaram da banca docentes convidados, como o reitor da UnB, José Geraldo de Sousa Junior, e o ministro do Tribunal Superior do Trabalho Carlos Alberto Reis de Paula, que, assim como o autor, é negro.

Retrato do preconceito

Mais de 7 mil ações de racismo foram identificadas em sete estados
(RO, MT, SC, RS, RJ, AL, PB)

Em 92% dos casos, o delito foi reclassificado de racismo para injúria ao longo do processo, o que torna a pena mais branda

Cerca de 60% das ações são movidas por mulheres, de
diferentes classes sociais

A ofensa verbal é o motivo de praticamente 100% dos casos, sempre associando ao negro qualidades desprezíveis, menções a animais e uma suposta falta de higiene.

Correio Braziliense, 12/10/2009. Brasil.

Um comentário:

Fabiola Rocha Bastos disse...

Só para esclarecimento:o valor da indenização que seria repassado a mim pedi,no dia da ultima audiência antes da decisão, que fosse transferido à uma Instituição de caridade em forma de alimentos ou prestação de serviços, mesmo assim, o descaso com o assunto fez com que fosse tudo para o mesmo lugar...terra do nunca, nunca mais falou-se sobre o asunto.
Forte abraço,professor!
Fabíola Rocha